15 dezembro 2015

Doces bárbaros















Meu texto sobre o título da Copa do Brasil está lá no ESPN FC.

Dezenas de ônibus estacionam em fila por todo o corredor exclusivo. Impossível avançar. Param os veículos e também a multidão que se aglomera mais à frente, ao lado, atrás, nas duas mãos da avenida. Rojões espocam, sinalizadores iluminam a noite, bombas-fumaça dão uma coloração esverdeada a um ambiente já explosivo. Os passageiros, sem alternativa, descem dos coletivos, o motorista desliga o motor, o cobrador filma aquela gente extasiada.

Um sujeito mais afoito se pendura na janela do ônibus. Dá um impulso e projeta o corpo para o teto. Outro vai atrás. Depois, mais um. Logo, são dúzias de torcedores em cima dos coletivos e das paradas do canteiro central da avenida Franscisco Matarazzo. Pulam, cantam, vibram. Erguem rojões, os fogos sacodem as janelas da zona oeste, os gritos de guerra tomam conta de toda vivalma a vestir verde e branco. Ao chacoalhar dos ônibus, transeuntes se assustam e atônitos policiais não sabem bem o que fazer – acabam por fazer nada.

Um desavisado que passasse por aquela avenida na noite visceral de 2 de dezembro de 2015 pensaria estar diante de um cenário de barbárie. Não deixa de ser verdade: o que se viu em todo o entorno do antigo estádio Palestra Itália nas horas anteriores e seguintes à decisão da Copa do Brasil foi uma demonstração absolutamente selvagem do amor de uma torcida pelo seu time. Por mais de 12 horas a vizinhança da moderna arena palmeirense testemunhou cenas capazes de transformar a mais despudorada noite de carnaval do mundo em uma festa de criança. Cenas de um amor desesperado e uma obsessão pelo título que acabou vindo muito por conta dessa devoção toda.
 
A verdade é que não houve, em toda a história centenária do estádio Palestra Itália, uma festa comparável à que fez a torcida palmeirense para celebrar a Copa do Brasil. Nem a final da Libertadores, nem os tantos duelos continentais disputados durante a efervescente era Felipão, nem qualquer clássico contra rivais históricos: não há termos de comparação. O 2 de dezembro de 2015 do palmeirense foi amor puro e intenso, tão bárbaro quando doce, fruto tanto da carência de títulos quanto do ambiente criado nas semanas anteriores aos jogos.

O elenco alviverde era tido pela mídia esportiva como o azarão diante de um adversário que ‘encantava’ pelo futebol rápido, vistoso e eficiente. O torcedor se alimentou dessa descrença ‘especializada’, dos palpites que davam o alvinegro praiano como virtual campeão, das provocações de jogadores rivais, da editora que publicou um pôster antecipado do oponente e de tudo mais que pudesse servir de combustível emocional.

Criou-se, pois, um clima de ‘nós’ contra ‘tudo e todos’. E, sob essa ótica, caberia ao torcedor virar um jogo que parecia perdido. Caberia a nós, os da arquibancada, dar o empurrão que faltava para que o time superasse a pretensa superioridade do rival. Se a vitória por 1-0 havia colocado o alvinegro em vantagem, servira também para manter o Palmeiras vivo e com relativa confiança, mais ainda depois de ver o adversário perder tantas oportunidades.

Incumbido desta tarefa, o palmeirense depositou naquela finalíssima toda a sua energia, como se fosse aquele o momento de salvar um ano que teve lá seus grandes momentos, mas que poderia terminar decepcionante sem o título. Toda essa energia foi canalizada por cada torcedor que trocou o sofá e todos os outros lugares do mundo pelas imediações do estádio.

Evitar aglomeração?

Pois a multidão alviverde tomou toda a região desde a tarde de quarta. Foi a nossa resposta contundente ao patético apelo da gestora do estádio para que evitássemos aglomerações e nos comportássemos como escoteiros. Pois aglomeramo-nos. Fizemos festa. Colaboramos – e muito – com a “prática do comércio ambulante”. Compramos tudo o que nos foi oferecido e, lá pelo meio da madrugada, demos por encerrado todo o estoque de cerveja dos que aproveitaram nossa festa para, honestamente, fazer uns trocados. E cantamos, vibramos, entramos em campo e jogamos com o time muito antes da noite chegar.

Lá pelas 18h, o sagrado cruzamento da Turiassu com a Caraibas já sinalizava o tamanho da festa que estava por vir. Éramos milhares, e mais dos nossos chegavam por todos os lados, como se houvesse espaço para mais gente. Em meio a todo o estoque de rojões e sinalizadores da cidade, o vento trazia um cheiro característico para os mais antigos: o das bombas-fumaça. “I love the smell of napalm in the morning”. Bandeiras desfraldadas, a bateria da Mancha Verde a ditar o ritmo, todas as músicas de arquibancada entoadas em sequência.

Tenho pra mim que só foi tão exacerbada a festa porque o novo estádio acabou por excluir muitos dos que estavam habituados a fazer a festa na arquibancada em tempos áureos – gente das organizadas, em especial. Sem poder comprar os ingressos, que passaram agora às mãos de um novo tipo de público, esses torcedores se viram obrigados a fazer a festa na rua. Antes. Durante. E depois. Se não seria possível cantar lá dentro para empurrar o time à vitória, então o jeito era participar do Corredor Alviverde na Matarazzo ou preencher cada centímetro quadrado das ruas que circundam a nossa casa. A história mudou para eles, e eles arquitetaram a noite histórica da torcida.

A coexistência de duas multidões distintas (a que entrou e a que sempre esteve lá) explica a dificuldade para se locomover ao redor do estádio durante toda a noite. Levava-se, tranquilamente, 10 minutos para percorrer um quarteirão, sendo carregado pela massa por sobre um caminho repleto de garrafas e latas. Não era possível virar o corpo para o lado sem esbarrar em alguém. E, como acontece em qualquer local com grande concentração de pessoas, houve quem se aproveitasse para praticar atos ilícitos ou cometer excessos. Contra emissoras de TV, jornalistas, indivíduos ou o patrimônio público.

Fato é que uma multidão desordenada abraçou um estádio por toda a noite, como quem fica de prontidão para garantir que tudo vai terminar bem, e um espetáculo belíssimo aconteceu dentro do nosso estádio graças ao entendimento entre a diretoria do clube e lideranças da organizada. O adversário sentiu o peso da torcida já no primeiro lance do jogo – e o nosso se fortaleceu graças ao grito de cada um que vestia verde. E nem todos os stewards do mundo seriam capazes de evitar uma cena belíssima: a torcida acompanhou o jogo em pé à beira do campo.

Fizemos história

Entendo, e até respeito, que alguém queira classificar tudo isso como selvageria. Que os vizinhos se sintam incomodados por não conseguir dormir. Que há quem tenha sido prejudicado pela exacerbação de todo esse sentimento. Que muitos possam ter queixas ainda mais graves a fazer ou até mesmo que os bravos, valorosos e destemidos homens do 2º BP Choque tenham ficado sem saber como agir diante de tão incomum manifestação – porque a verdade é que ficaram, e devemos a isso o fato de não termos tido mais um massacre na porta de casa.

Mas que não venha a gestora do estádio me dizer que uma noite como a que vivemos neste 2 de dezembro é “tão importante quanto o respeito aos moradores do entorno”. Até porque muitos deles não nos respeitam.

Nunca o entorno esteve tão dentro do jogo. Todo torcedor que girou a catraca pensou, em vários momentos da final, naquele inédito mar elétrico de gente em pé na rua esperando, sem arredar pé, o desfecho daquele dia selvagem. De modo que sair de um estádio nunca se pareceu tanto com entrar em um estádio. Esse pessoal abriu mão de ver o jogo com clareza, em troca de sentir o Palmeiras com todos os sentidos. Isso a crítica especializada em HD nunca vai entender. Não há mapa de calor para isso.

Além da Copa que fomos buscar no grito e da festa sem igual, travamos uma disputa por território. Não apenas o físico, o do entorno do estádio, mas o território simbólico, aquele do confronto entre o modelo das novas arenas e a cultura da arquibancada, entre interesses corporativos e a manifestação popular, entre o autoritarismo e a espontaneidade, entre a agenda de domesticação do torcedor e a certeza de que mandamos na nossa casa.

Fizemos história, senhoras e senhores! Vencemos essa Copa junto com o time. E, para que isso acontecesse, tivemos também de vencer a batalha pelo nosso território. Nunca é só um jogo que está em jogo. Avanti!

02 dezembro 2015

Seremos Palmeiras!

























Vila Belmiro, Santos/SP, quarta-feira à noite. Chove. Lá estamos, 824 alviverdes, pela quarta vez no ano. Chove como choveu em todas as outras vezes que lá estivemos – pelo menos é assim que registra a memória coletiva.

Somos 824, e tão acostumados estamos a representar o Palmeiras naquele estádio que é quase possível identificar pelo nome cada um dos que ali estão – é um sentimento de irmandade muito comum aos que viajamos para defender nossas cores por todos os lados. Daí então que, bem do meio daquele puxadinho que nos é destinado, nasce um canto (retrô) que logo vai ganhando força:

“Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Porco/ Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Porco/ Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Porco/ Seremos campeões! (mais uma vez)”.

Seremos?

Talvez sim. Talvez não. E cada um de nós, eu imagino, vem sendo perseguido pelas mesmas inquietações, alternando momentos de confiança extrema, de pura ansiedade e de um pessimismo de tirar o sono. Ninguém escapa: os 40 mil privilegiados que estaremos no Palestra; os milhares aglomerados do lado de fora; os milhões que, pelo mundo, gritarão em direção à zona oeste da metrópole.

Eis que minha mente viaja longe, duas décadas em direção a um passado glorioso, para lembrar de tardes e noites dos princípios da minha adolescência no estádio. Eram poucos jogos ainda, uma meia dúzia ao ano, porque a mim não se permitia mais do que isso. Eram tempos, aqueles, em que cantávamos essa mesma música com enorme naturalidade, como se fosse impossível que as coisas tomassem outro rumo: sim, seríamos campeões – e, invariavelmente, fomos.

Agora já não se pode ter tanta certeza assim. A história inspira confiança; o time, nem tanto. A camisa nos precede e vai a campo; mas também a defesa que tomou gols em 29 dos últimos 30 jogos. Lá estará também a torcida que vem transformando o estádio inteiro em um Gol Norte nos jogos decisivos; mas também o treinador que parece não saber o que está fazendo. O retrospecto ajuda ou atrapalha, a depender da análise que se queira fazer. A arbitragem? Bom, trata-se de um obstáculo a mais. O adversário? É (ou está) melhor, bem sabemos. A mídia? É tão inimiga que isso pode até ser um fator de motivação.

E, sejamos pragmáticos, esse clima de desconfiança quanto à capacidade de reverter o resultado acaba até nos fortalecendo. Porque nossa história foi construída assim, à base de muita superação, de entrega, de perseverar quando nada mais nos era permitido. Como diz mestre Ezequiel: “Nunca duvidem do Palmeiras. Nunca. Enquanto existir uma camisa verde com um P no peito, deve haver respeito”.

Foi com esse espírito que, três anos atrás, a massa alviverde entrou em campo para empurrar em direção a nosso último troféu um catadão aos frangalhos: Bruno-Arthur-ThiagoHeleno-LeandroAmaro-MaurícioRamos-Juninho-Henrique-Assunção-JoãoVitor-MárcioAraújo-DanielCarvalho-Mazinho-Betinho. Um time obsceno, para dizer o mínimo. E campeão.

É a isso que devemos nos apegar para cantar que “seremos campeões! (mais uma vez)”. À festa que fizemos na noite fria de Curitiba em 2012. Aos segundos intermináveis entre o cruzamento para a área e o leve desvio de um herói improvável para fazer ecoar um estampido seco no gol de fundo do Couto Pereira. Às noites em que a Arena Barueri guardou para si muito da alma e do espírito do velho Palestra. À jornada felipônica que vivemos no saudoso Olímpico porto-alegrense. Ao petardo de Darci na semifinal de 1998. Ao tiro salvador de Agnaldo Liz em um pouco lembrado 1 a 0 contra o Botafogo. Ao gol espírita do eterno Oseas. À festa que fizemos nas molhadas arquibancadas do Morumbi naquela tarde de sábado. E, por que não?, aos dois gols de Euller quando tudo já estava perdido.

Devemos, também, lembrar com carinho de cada capítulo da trajetória que nos trouxe a este 2 de dezembro de 2015. O desnecessário sufoco contra o ASA. Os arroubos geniais do menino Jesus no Mineirão – e lá estivemos, poucos e bons, a empurrar o time quando ainda nem sonhávamos com o título. O empate suado que fomos buscar em um sempre inóspito Beira-Rio. O improvável cabeceio de Girotto que fez, pela primeira vez, o novo Palestra se parecer com o velho Palestra. Seis mil palestrinos em uma noite mágica no Maracanã e um pênalti redentor. O Gol Norte se espalhando por todo o estádio diante de um rival preso na garganta desde 2009. Barrios duas vezes. A defesa de Prass. Os pênaltis. A explosão. O alívio. E a final na Baixada: o pênalti não marcado, os gols perdidos de parte a parte, as discussões, a tensão onipresente, a nossa torcida fazendo mais barulho que os mandantes já na madrugada...

Não pode ter sido à toa.

“Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Porco/ Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Porco/ Dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, Porco/ Seremos campeões! (mais uma vez)”.

Seremos?

Certeza não se pode ter, mas lutaremos por isso. Queremos a Copa. Queremos buscar o que é nosso. E faremos, a partir da arquibancada, tudo o que for possível e imaginável para que isso aconteça.

Seremos Palmeiras! E isso, esperamos, haverá de ser o bastante.

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- Sobre o infeliz comunicado da gestora do estádio – e a conivência de um Palmeiras vítima de uma gestão elitista –, o post do Paulo Silva Jr. é mais do que necessário. De minha parte – e espero que relativizem o exagero –, a mensagem que deixo para cada palmeirense é a seguinte:
“Aglomeremo-nos. Compremos todas as cervejas e lanches do comércio ambulante. E mijemos no portão de cada dona Antonieta da Pompeia. Que os vizinhos do entorno respeitem o estádio que define aquela região há mais de século.”

- Outro ponto importante: muito cuidado com a PM. Antes, durante e depois do jogo. Lembremo-nos do que aconteceu em 2008, em 2012 e agora mesmo em 2015.

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Texto originalmente publicado no ESPN FC.