25 outubro 2010

O futebol vive na Bolívia

Evo Morales, o presidente da Bolívia, foi jogar futebol. Confrontado por um adversário, fez o que se espera de um jogador, seja ele presidente de um país ou cidadão comum: mandou um pontapé no saco do sujeito. Não vou aqui discutir política, mas preciso registrar que o simples fato de ter origem indígena garante legitimidade a Evo para ocupar o cargo mais elevado da Bolívia.

O incidente protagonizado por ele ocorreu em 4 de outubro, enquanto eu estava no Peru, em viagem de férias. Agora, com relativo atraso, me permito dizer que Morales desferiu o chute não em um adversário ocasional, mas sim no maldito Fair Play da Fifa. Aliás, se Evo se encontrasse algum dia com um desses velhotes safados e hipócritas da Fifa, certamente teria a dignidade de rasgar na frente deles o tal caderno de encargos que a entidade impõe para os estádios.

Corta para o estádio Hernando Siles, em La Paz, palco dos jogos da seleção boliviana de futebol. No dia 13 de outubro último, uma quarta-feira, no decente horário das 20h, se enfrentaram pela oitava vez no ano Bolivar e The Strongest. Era o Clássico Paceño, opondo os dois maiores clubes do país. Quase no mesmo horário, na distante Santa Cruz de la Sierra, Blooming e Oriente Petrolero disputaram outro clássico, o Cruceño. Os dois jogos eram válidos pela 14ª rodada da Liga, o Clausura boliviano.

O Hernando Siles fica em uma área central de La Paz, a 3.600m acima do nível do mar. Com capacidade para receber 45 mil torcedores, está livre ainda das frescuras impostas pela Fifa. Tem cadeiras, de plástico, apenas no setor mais caro, e todo o resto ainda segue os princípios da decência. Do lado de fora, não há qualquer sinal de afetação ou de restrições às liberdades do torcedor de futebol. Há vendedores ambulantes, barraquinhas com todo tipo de comida, e a movimentação caótica e, por isso, saudável que antecede qualquer grande clássico.






Por maior que fosse a movimentação do lado externo, o estádio não encheu naquela noite. Não há demérito algum, se julgarmos que o jogo aconteceu em uma noite com temperatura inferior a 10º C e debaixo de uma tempestade considerável, com direito até a granizo. E, a bem da verdade, era a oitava vez no ano que se enfrentavam os dois times e a situação do The Strongest era bem delicada.

Foram mais de 20 mil torcedores, sendo que 18.291 pagaram ingresso. Disso tudo, eram 13 mil do Bolivar, o clube de maior torcida do país, e 7 mil do Tigre. Quem pagou ingresso desembolsou entre 20 bolivianos (populares, Curvas Sur e Norte) e 70 bolivianos. O que isso significa? Que os torcedores da arquibancada pagaram o equivalente a R$ 5 para ver o grande clássico nacional. Quem optou pelo setor coberto, o mais caro, gastou menos de R$ 18.







Em campo, um grande duelo. The Strongest e Bolivar fizeram uma partida cheia de alternativas, um 3 a 2 com uma virada para cada lado, duas expulsões, invasão de campo, agressões, jogadas ríspidas, muita porrada, provocações recorrentes a partir das curvas. Um clássico, enfim.

E choveu. Muito. Até granizo. Nada que atrapalhasse a festa das duas hinchadas, cada qual localizada na sua respectiva curva. A do Bolivar, bem maior, foi também mais participativa durante os 90 minutos. Do outro lado, a hinchada do Tigre parecia menos confiante e apenas respondia aos gritos que vinham do outro lado.

Quanto ao jogo, vale assistir ao vídeo abaixo, que traz os cinco gols, a chuva, os melhores momentos, as falhas grotescas do goleiro do Bolivar, um erro grosseiro do árbitro e até a invasão do torcedor do Bolivar, um momento único na partida.



As imagens aí do alto não mostram a íntegra da invasão, mas o fato é que, não contente em fazer o que fez com o atleta do Tigre e pouco se importando com as porradas que levou dos reservas, o sujeito foi carregado pelos policiais com os braços erguidos, em sinal de vitória, e fazendo gestos. Deve ter apanhado lá embaixo, é verdade, mas, antes disso, deixou o campo sob aplausos do público.

Sim, o futebol na Bolívia ainda é do povo. É a principal, se não única, alternativa de lazer para a população local. E é respeitado como tal. Que os velhos canalhas e hipócritas enfiem o Padrão Fifa no cu!

***

Liga Boliviana - Clausura/2010

The Strongest 3-2 Bolivar
1-0, 1-1, 1-2, 2-2, 3-2
Renda: 459.135 bolivianos
Público: 18.291 pagantes

***

Em tempo e para manter a coerência com o meu discurso pré-viagem, insisto que não é possível fazer jogos internacionais em La Paz (ou em Potosí, estádio que também conheci). Não dá. Não existe ar suficiente, não é possível respirar, não dá para andar sem sentir tontura e fraqueza. Está feito o registro.

12 comentários:

João José disse...

Caro amigo, entendo sua preocupação em criticar os preços dos ingressos aqui no Brasil, porém quando você diz que os torcedores bolivianos pagaram cerca de R$ 5 para ver o clássico, você não está distorcendo a comparação?
Vejamos: o ingresso custava 20 bolivianos, contudo o real vale cerca de 4 vezes mais que a moeda boliviana ( 1 boliviano = 0,25 centavos, aproximadamente), o que torna a comparação distorcida. Seria o mesmo que afirmar que um ingresso para assistir um clássico alemão, a hipotéticos 20 euros, custasse, sei lá, R$ 47, ou ainda, 188 bolivianos (assumindo que o Euro custe cerca de R$ 2,35).
Enfim, o valor relativo de cada moeda torna a comparação injusta se feita desta forma. O mais correto não seria, por exemplo, comparar o preço do ingresso com o salário mínimo?
Desculpe se o comentário ficou um pouco extenso, mas a minha intenção é contribuir com o debate.

Grande abraço!

Rodrigo Barneschi disse...

Fala, João!

Pode ficar tranquilo; todos os comentários são bem recebidos por aqui.

A questão que você coloca é bem pertinente, mas meu maior objetivo aqui nem dizia respeito ao valor dos ingressos, mas sim à maneira como o futebol é encarado por lá e mesmo ao desrespeito contra as normas da Fifa.

Pelo que pesquisei do salário mínimo gira em torno dos 680 bolivianos. Ou seja, daria para comprar 34 ingressos para o grande clássico do país. No Brasil, para conseguir isso, o salário mínimo precisaria ser R$ 1.360.

De qualquer forma, o que importa não é tanto o valor numérico, mas sim o poder de compra. E é fato que fica muito mais fácil para um boliviano ir ao estádio do que para um brasileiro que ganha salário mínimo.

Mas nem era essa a minha intenção com o post. Eu queria mais fazer um registro do grande clássico do país e da maneira como o futebol é encarado por lá. Tá dentro dos princípios do blog.

Abraços

JoãoP disse...

Belo texto. Belo trabalho.

Uma pergunta que me apareceu... Por acaso eles são fanáticos, como, por exemplo, nós e os argentinos somos? Ou a coisa para eles é mais branda?

Abraço.

Bruno Prado disse...

Futebol tem que ser assim. TEM que ser assim. Essa viadagem que está hoje é o reflexo desse monte de regrinhas da FIFA.
Os melhores anos que vi futebol, de que me recordo, foram do saudoso início dos anos 90. Princesinhas como Edmuno, Djalminha, Jr Baiano, Rincón, Clebão e até crápulas da outra estirpe como Marcelinho Carioca (o gazela), e Danrlei, pra citar o mínimo, garantiam o bom espetáculo do futebol, com entradas violentas, fome de bola e resolvendo os casos de litígio na porrada, como todo esporte de contato deve ser. Hoje fica essa bichisse tão descarada que os atacantes parecem que têm medo de machucar o goleiro quando chutam. E Edmuno o fazia de propósito!
Queria ver o que aconteceria se a Federação regulamentadora do Rugbi tentasse propôr essas coisas para o esporte...

Anônimo disse...

cara, me diz uma coisa uma, vc encarou algum dos quitutes preparados pelas tiazinhas gordinhas?
Alvaro

Rodrigo Barneschi disse...

JoãoP
Não, nem se compara. Nem daria para pensar em uma comparação com a Argentina, mas a relação do brasileiro com o futebol é muito mais próxima do que ocorre na Bolívia. É importante para eles, claro, mas em outra medida.

Bruno
Valeu! É bem por aí.

Alvaro
Te confesso que não tive coragem. E eu tinha passado mal um dia antes do jogo, o que recomendava cuidados redobrados com a alimentação.

Luan disse...

belo post pra quem gosta de futebol. é verdade, lá na bolivia o futebol ainda é feito para o povo. e obrigado por nos proporcionar estas informações para sabermos mais como é o futebol nos nossos países vizinhos. abaraço
AVANTI PALESTRA

Luiz disse...

Os quitutes parecem ser bem apetitosos!

Anônimo disse...

PARABÉNS Barney!!!! Na minha humilde opinião é o melhor post do blog até hoje. Do caralho!!

Apenas gostaria de fazer um contraponto geográfico em relação a questão da altitude.

Sem dúvida temos aí um aspecto da geografia Boliviana que dá uma vantagem aos Bolivianos.

Vamos agora às vantagens geográficas do Brasil, tomando por base apenas São Paulo. Renda per capta de U$ 8.000 e população de 10milhões só na grande SP. Isso pra falar de apenas 2 vantagens, mas poderia citar pelo menos umas 10 vantagens geográficas que levam o Palmeiras ou qualquer outro time Brasileiro a ter uma força várias vezes superior que a do adversário do altiplano.

Assim não há que se falar em isonomia de fatores, posto que cada cidade ou país tem suas características próprias.

Ainda na questão geográfica citemos outro exemplo: Aceitemos que a Bolivia jogue contra o Brasil sempre a nível do mar, ok. Mas os jogadores convocados do Brasil devem ser apenas os da cidade de SP, pois assim são os melhores entre 10 milhões que é o número de habitantes da Bolivia. Assim teríamos a igualdade de condições porém para os dois lados. Acho que não é por aí.

Abração, Aragonez

Rodrigo Barneschi disse...

Valeu, Araga! Essa é uma longa discussão. Qualquer dia conversamos sobre isso.
E viva a Bolívia!

André Fix disse...

Joelhada mortal. Deve ter formado o 3º ovo.

Anônimo disse...

Cara eu tava nesse jogo e nao concordo com o que voce disse da torcida do tigre. Ao meu ver, a torcida deles foi muito show, a pesar de nao ser maioria (45% do total) pela situaçao do time na tabela, foi a que mais cantou.