04 junho 2013

Dois velhos amigos e uma carta







Maracanã, meu velho amigo, 

Tenho acompanhado o noticiário desde o início e, portanto, não faz muito sentido perguntar como tem passado. Lamentei desde o primeiro momento, mas não poderia imaginar que as coisas chegariam a esse ponto. Eu bem sei o quanto me toma por arrogante, mas dessa vez mesmo você deve me dar razão. Se não sou ainda centenário como meu nome, estou chegando lá e então me sinto à vontade para fazer agora o papel do senhor de idade que se põe a aconselhar os mais jovens. 

Outro dia vi uma foto sua e não pude reconhecê-lo. O que fizeram de ti? Muitos dos nossos já passaram antes por processos de “modernização” (com o perdão da palavra), mas nenhum parece ter sofrido tanto. Não se tratou apenas de um rejuvenescimento, não foi só a ofensa de te colocarem essas desnecessárias cadeiras coloridas, foi bem mais do que um simples encolhimento. Não se contentaram em mudar sua aparência externa; mexeram por dentro, no âmago, no que te faz distinto de todos os demais – e te tornaram igual a outros tantos. O que fizeram contigo foi o que de pior pode acontecer a um estádio: tomaram sua alma. 

Alma, meu caro amigo, é o que distingue poucos de nós em meio aos milhares de estádios que há por aí. E temos (ou tínhamos), você e eu, muito mais em comum além da alma. Foi aqui, em 1930, que, recém-nascido, vi a Celeste Olímpica vencer a primeira Copa do Mundo. E foi aí, 20 anos e uma Guerra Mundial depois e com você também recém-nascido, que El Negro Jefe, Schiaffino e Ghiggia foram buscar o outro Mundial de que se orgulha o Uruguay. Você pode até não gostar, pois te carimbaram esse tal Maracanazo para todo o sempre, mas isso nos tornava um tanto mais próximos. Tanto quanto o fato de sermos os palcos sagrados do futebol nas Américas – quem haverá de nos desmentir? 


















A verdade, velho Maraca (se me permite a intimidade), é que estou para te escrever há tempos e venho adiando a tarefa, mas não deu para resistir aos acontecimentos mais recentes. 

Não sei se você sabe, mas estou em uma semana das mais agitadas, com jogos decisivos do campeonato nacional e um duelo do nosso selecionado contra a França. Nesses jogos todos, a rotina é a mesma de sempre: o povo se fez presente, cada torcedor fica (em pé ou sentado) no lugar que bem entende, bandeiras se agitam, faixas são penduradas, camisas tradicionais sobem para o gramado, ouve-se o alento das hinchadas de lado a lado, ofensas são proferidas sem muito critério, papéis picados se fazem atirar, vende-se café, choripans, churros e hamburguesas, Montevideo vive o futebol que nós dois tão bem conhecemos. 

Gente de todo tipo dá as caras por aqui. Minhas velhas, históricas e desgastadas tribunas recebem o povo semana após semana. 

POVO. Você ainda se lembra do significado dessa palavra? 

Novamente fazendo uso da prerrogativa de um idoso de 83 anos que aconselha um ex-senhor de 63, te digo que é algo bem distinto dessa gente que te tomou de assalto de uns anos para cá. A verdade, meu bom amigo, é que te dilaceraram por completo apenas para que burocratas falassem em seu nome e pudessem cobrar os impropérios de agora (vi e me assustei com os preços dos ingressos). Não contentes com a extorsão praticada, ainda querem domesticar o público, submetendo quem te visita a absurdas cadeirinhas numeradas e querendo impor o jeito como se torce. Aliás, me recuso a chamar de “torcer” o que se tem feito por aí nesses tempos tão sombrios. 

Por aqui, eu admito, as velhas arquibancadas que viram a primeira Copa andam precisando de reparos, as cicatrizes já se fazem notar além do aceitável e há evidentes sinais de cansaço. Não vou negar que alguns cuidados seriam bem-vindos, mas não pode ser nada como o que fizeram contigo. Porque, em que pesem todos os problemas que vêm com o tempo, ainda se vive a história do futebol nessa zona central da velha Montevideo. E minhas tribunas ainda se chamam Olimpica, Amsterdam, Colombes e Américas, bem ao contrário das suas, que agora atendem por letras e números que nada dizem. 


















O povo ainda pode, semana após semana, olhar para esta velha cancha e relembrar os grandes esquadrões que por aqui passaram. E minha estrutura não é feita apenas de cimento – que os oportunistas e deslumbrados que te mataram certamente chamariam de ultrapassado –, mas é composta de uma Copa do Mundo, centenas de títulos, incontáveis clássicos e muitas, inesquecíveis e dramáticas noites de Libertadores. Por aqui passaram – e continuarão passando – todos os grandes clubes do continente. 


















Meu conterrâneo Eduardo Galeano, que tanto te respeita, escreveu certa vez que eu “suspirava de nostalgia pelas glórias do futebol uruguayo” e que você “continuava chorando pela derrota de 1950”. Pois a primeira parte continua verdadeira – o saudosismo me precede –, mas te fizeram esquecer à força as memórias (boas e ruins) das últimas seis décadas. Não apenas te tomaram essas lembranças todas, mas afastaram de ti a gente que o fazia ser o mundialmente famoso Maracanã. 

(Outro dia, velho amigo, escutei que se cogita uma candidatura do Uruguay para sede da Copa de 2030. Pois eu desejo que isso nunca aconteça. Não quero ter o mesmo destino que impuseram a ti.) 

E sim, fiquei sabendo do vexame que você passou com o quase cancelamento do jogo entre o país que inventou o futebol e o que se diz "o país do futebol". Sabe, meu velho, você vai me perdoar, mas isso até que viria a calhar. Porque um vendeu a alma faz tempo, afastando o povo das canchas, e o outro tem seguido pelo mesmo caminho, mas de um jeito muito mais vergonhoso. E eu sinceramente prefiro guardar de ti a imagem que adorna o Museo Del Fútbol, aqui no meu interior: um Maracanã grandioso, repleto, popular, liberal ao extremo, sem imposições, malandramente carioca e com o espírito aberto para receber o povo... 


















O futebol, você vai me perdoar uma vez mais, continua a viver mesmo aqui no Uruguay – e, que eles não saibam disso, lá do outro lado do Río de La Plata... 

Saludos, 
Centenario de Montevideo

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Texto originalmente publicado no Impedimento.















20 comentários:

gazu disse...

Esplêndido!


Edgard Gazu.

Justi disse...

Não a palavras pra descrever esse texto, meus parabéns ao autor.

Anônimo disse...

Nota 10!!

claudinei rockwood disse...

Há tempos não leio este blog, no qual, diga-se de passagem, aprendi a respeitar. E quando retorno a ''bisbilhotar'', me deparo com um texto desses.
Belo post meu caro, o Centenário está ai, desde 1930 do mesmo jeito, com a mesma arquitetura, sem tirar nem por, resistindo bravamente, ou melhor dizendo, heroicamente a esses tempos digamos, ''modernos''. Ainda bem que a alienação não tomou conta do povo uruguaio, ainda bem que no Uruguai não existe uma emissora ''tipo Globo'' para entrar no lar e alienar o povo. Ainda bem que o povo uruguaio não é hipócrita igual ao nosso, a ponto de entoar canticos do tipo ''yo soy uruguayo, con muy orgullo, con muy amor''.
Bravo povo uruguaio.

''Os homens decaem ou engrandecem-se pelos seus próprios atos''(C.Rockwood)

Anônimo disse...

Grande artigo. Triste realidade.

Vinicius disse...

Sensacional cara, passei por algo semelhante essa semana, quando voltei a visitar o Olímpico,e olhei para as arquibancadas vazias, lembrando de tantos jogos que vi atrás de um dos gols, viradas incríveis em libertadores, derrotas mais incríveis por outras competições... E lembrando das incontáveis polares derrubadas no entorno do estádio, churrasquinhos de gato por todas as bandas da Azenha. E nem ao menos nos resta o alento de que teremos o alento de saber que é o "mesmo" estádio depois de uma reforma, como por exemplo será o Palestra... Mas talvez seja melhor assim, Teremos apenas a lembrança do verdadeiro Olímpico Monumental, original, de cimento, sem precisar passar pela agonia de ver ele sendo destruído dia após dia, mas enfim, sei que esse blog não tem nada a ver com meu clube, mas obrigado pelo espaço, precisava de um texto desses para poder desabafar sobre o terrível sentimento que senti ao entrar pela última (?) vez ao lugar que mais gosto no mundo. Abraço aos palmeirenses,que voltem logo, chega de times pequenos.

Vinicius disse...

Me desculpem os erros de português e concordância acima, é que realmente fico mt triste com tudo isso e nem olho direito, só vou escrevendo.

Igor Campos disse...

Excelente texto como sempre Barneschi. Muito triste o que estão fazendo com os estádios hoje em dia. E o que mais impressiona é que a grande maioria da imprensa, mídia, "torcida" não enxerga dessa maneira. Estão matando o futebol. Abraço, Igor.

Carlos Z/S disse...

Eu estive no Centenário em novembro do ano passado. Foi uma tarde de sol numa segunda-feira. Não havia ninguém lá, só eu. Mas ao mesmo tempo não era só eu.

As arquibancadas quase falavam, como quem quer contar as histórias todas que se passaram ali.

Eu estava só, sem estar só. Podia sentir a emoção daquele estádio lotado, os times subindo a campo em um Nacional x Peñarol.

Realmente aquele lugar tem alma.

Acho que vou me mudar pra lá.

Eu gosto é de futebol, não dessa merda padrão FIFA.

Esse futebol que querem empurrar para nós... Sei lá, parece a mesma coisa que obrigar um fã do Iron Maiden a assistir a um show do Bon Jovi. Não dá.

Anônimo disse...

Grande texto, meu caro!

Verena Ferreira disse...

triste, mas lindo e emocionante, amor.

Hermes disse...

Lindo texto. Parabéns.
Fico só pensando em onde estavam todas as pessoas, que com muita sabedoria, estão criticando ou difamando ou eram contrarias a reforma do maracanã, quando saiu que o Brasil seria palco da copa do mundo de 2014? Depois de pronto fica fácil enxercar as falhas. Acho que foi uma tremenda omissão de textos geniais como esse que contribuirem e muito para que o apelo popular não chegasse até as pessoas responsáveis pelo projeto. Gente que faz a mídia, seja ela qual for, tem a obrigação de não se omitir. Mas tem de ser na hora certa. É muito por isso que o Brasil vai como vai. Foi-se museu do índio, os mesmos que são expulsos de belo monte e tantas outras coisas que o Brasil das mídias, sejam eles sociais ou não deveriam ter avisado o povo de uma forma mais firme como a nossas mídias dos anos pre- e pós construção do Maraca. Infelizmente estádios, jornais, pessoas já não são mais os mesmo. UMA PENA.

Mais uma vez gostaria de parabenizar você pelas belas palavras...

Unknown disse...

Boa noite a todos, já estive cinco vezes no Centenario em Montevideo, desta forma já assisti dois jogos do Palmeiras lá , um contra os carnoberos , e os bambis uruguaios,alem de três clássicos locais, é linda a velha cancha, Histórica, Monumental, pois há lá a raiz de um futebol, com garra, e amor a modalidade que nós faz torcer pelo Alviverde, mas como você Barneschi, bem como os demais amigos, já sabem , o tal ``profissionalismo´´, além de balela, e discriminatório e elitista, descaracterizando o futebol!
Claudio Longo / FAMIGLIA PALESTRA
PARABENS PELO TEXTO !

Anônimo disse...

Um estadio tem que ter alma, historia, mesmo passando por reforma. Gigante da Beira Rio, mantem intacta sua alma. Beira Rio, Gigante Para Sempre.

MB disse...

Nunca eh demais repetir: Post genial e emocionante!
Parabens mais uma vez Barneschi

Michel

Anônimo disse...

Traduziu em palavras o que muitos de nós pensamos!!! Magnifico texto.

Anônimo disse...

E a pergunta que não quer calar é...

Que tipo de "equipamento" será inaugurado na Rua Turiaçu nº 1840 em março de 2014?

Encontraremos algo que evoque a alma da antiga casa ou teremos mais um padrão Fifa "bonitinho"?

Ronei

Léo Souza disse...

Excelente!

"Quem chama o novo Maracanã de estádio é porque nunca foi a um estádio".

Barneschi, qual sua opinião sobre nossa nova "arena"? Te confesso que sinto uma inveja vendo as festas das torcidas em São Janú, Barradão ou Couto Pereira. Nunca mais teremos isso... só teremos uma cancha com uns 60% de corneteiros e uma pequena parte de torcedores.

Unknown disse...

Tudo isto me preocupa!
Como será nostra casa?!
Nossa alma também será roubada?!

Renato Moreira disse...

Já estive nas arquibancadas do centenário defendendo nosso Palestra em uma Libertadores... O relato reproduz com fidedignidade o espírito da coisas toda...

Como entramos muito antes dos uruguaios no estádio, podemos sentir o clima, aquelas arquibancadas são vivas, elas falam, elas intimidam, elas remontam a história.