05 abril 2008

A identidade com a massa

Problema maior do que o processo de elitização orquestrado por uns e outros no futebol brasileiro só mesmo a letargia de muitos dos que serão afetados por isso. Em nome de argumentos frágeis, ingênuos ou preconceituosos, há até quem apóie tais medidas.

Não é o caso deste blog, incansável na defesa dos direitos do torcedor e na preservação da arquibancada tal como ela é. Pretendo agora iniciar um debate sobre
o risco de o futebol perder identidade com as massas que o fazem um esporte popular por definição.

Antes do meu texto, do qual alguns podem estar cansados, deixo aqui um interessantíssimo preâmbulo, que serve também para dar um pouco mais de ressonância a tudo o que vem sendo dito neste espaço.

Comecemos por uma contribuição mais catedrática, de Goethe, que, uma vez na nossa pátria mãe, passou por Verona e por outras tantas cidades. O resultado é o livro “Viagem à Itália 1786 – 1788”, editado pela Cia. das Letras. Com crédito para o corintiano e companheiro de batalha Filipe, eis o que se pode retirar das páginas 48 e 49:


Verona, 16 de setembro

O anfiteatro é, pois, o primeiro monumento importante da Antigüidade que vejo, e tão bem conservado! Ao entrar e, mais ainda, ao caminhar pelo anel superior, pareceu-me estranha a visão de algo tão grande e de nada, ao mesmo tempo. Não se deve vê-lo vazio, mas repleto de gente, como ele esteve recentemente, em honra de José II e Pio VI. Diz-se que o imperador, acostumado a ver grandes massas de homens, ficou espantado. Mas apenas em tempos remotos, quando o povo era ainda mais povo do que o é agora, o anfiteatro podia produzir todo o seu efeito. Uma tal construção foi feita para que o povo contemple sua própria imponência, para que se divirta consigo próprio.

Quando algo digno de se ver tem lugar ao nível do chão e todos acorrem, os que estão mais atrás buscam de todos os modos possíveis erguer-se acima dos que estão mais à frente: as pessoas sobem em bancos, buscam barris, aproximam-se com os carros, estendem tábuas sobre eles, ocupam a colina mais próxima e, rapidamente, uma cratera se forma.

Se o espetáculo se repete com freqüência num mesmo lugar, arquibancadas são construídas para aqueles que podem pagar, e o restante da multidão se ajeita como pode. Satisfazer a essa necessidade de todos é a tarefa do arquiteto. Com arte, ele constrói uma cratera a mais simples possível, a fim de que seu adorno seja o próprio povo. Vendo-se assim reunido, este último só pode espantar-se consigo próprio; acostumado a se ver caminhando em meio à confusão, a deparar consigo próprio em meio à multidão desordenada e indisciplinada, esse animal de muitas cabeças e muitas sentenças a vagar oscilante de um lado para outro vê-se reunido num corpo nobre, fadado a formar uma unidade, unido e consolidado numa massa, na qualidade de um ente único, animado por um único espírito. A simplicidade da forma oval é perceptível da maneira mais agradável a todos os olhos, e cada cabeça fornece a medida da enormidade do todo. Vendo-se, porém, o anfiteatro assim vazio, não se tem uma medida, não se sabe se ele é grande ou pequeno.

Há que se louvar os veroneses pela conservação dessa obra. O mármore avermelhado empregado em sua construção sofre os ataques do tempo, razão pela qual os degraus vitimados pela erosão são constantemente reconstruídos um a um, e quase todos eles parecem novinhos em folha. Uma inscrição lembra um certo Hieronymus Maurigenus e o inacreditável zelo por ele dedicado ao monumento. Da muralha exterior, apenas um pedaço permanece em pé, e eu duvido que se tenha algum dia chegado a concluí-la. As abóbodas inferiores, as quais dão para a grande praça chamada Il Brà, são alugadas a artesãos, e é motivo de muita alegria ver essas arcadas mais uma vez cheias de vida.



Temos agora uma segunda referência, não necessariamente semântica à primeira. 220 anos depois, parece ser uma boa atualização. A palavra está com o Teo, em recente comentário no OV:


“Bem, fui aos dois últimos jogos (Ponte e Portuguesa) no Setor Visa. Pra conhecer e, principalmente, porque tô achando um saco essa história do Palestra Itália fatiado. Olhem o mapa de entrada, pros diversos “setores”. Mas que porra de setor? É tudo arquibancada, não é? Parece que não! Agora tem a área do Família (não sou), da Uniformizada (que eu também não sou), etc. Bom, alguém pode me falar onde posso ficar pra assistir ao jogo do Palmeiras? Sobrou algum lugar com o mínimo de decência, ou como disse o Rafael Pereira “apenas um pedaço de concreto para podermos pular e se esgoelar pelo Verdão”?

À experiência no Visa: um monte de nego reclamando, os tradicionais gritos de “senta, senta”. Irritante! E, pior, me passou a impressão de que aquele setor não deixa mais a torcida acender. Bem, paciência. Peguei uma cerveja sem álcool e fui pra mureta, minha tradicional mureta, na boca do gramado (foda-se a numeração da minha cadeira) para acompanhar o ataque (é só isso mesmo que se enxerga dali).

Tenho mais de 700 jogos no estádio, grande parte deles no Palestra. Senti saudade dos amigos passando no fosso. Da bateria no intervalo. Da meia-cerveja Antarctica (faixa azul) amarga pra kct, mas pelo menos com álcool.

Onde quero chegar? Eu sou do tipo que se a evolução e a chegada do conforto trazem necessariamente essa caretice e ‘civilidade’, eu acho que tô fora. Porque quando eu compro ingresso pro estádio, busco mais que entrada sem fila, banheiro limpo, respeito ao consumidor, etc. E também nem sei se é legal esse lance de tratar torcedor (o que torce, sofre, não o que passeia) como consumidor, pelo menos por essa ótica. Quero assegurados os meus direitos sagrados de torcedor, que aliás são bem poucos (xingar, e muito, torcedor adversário, por exemplo). Pra mim, na ida ao estádio estão implícitos: euforia, integração, comunhão, o abraço no cara que você nem conhece na hora do gol do Verdão. São coisas que não encontramos no teatro ou no Cirque du Soleil (aqui sim, quero banheiro limpo) e que importam pra mim, muito mais que a plasma no intervalo. Foi assim que eu me fiz torcedor e criei o hábito de assistir futebol. Senão, como explicar as viagens pra assistir aos jogos do meu time (fui em muitos nesse Paulista), ficar atrás do gol em estádios bizarros, não enxergar quase nada e voltar pra casa feliz pra cacete?

Ainda acho que estádio tem que ser tomado NA MAIOR parte pelo povão. Festa popular mesmo. Não curto esse lance de um pequeno setor com ingressos mais baratos.

Pessoal da Arena, não deixe nossa casa ficar um lugar chato. E não se esqueçam de mim, acho que eu mereço!

Putz, desculpem, acabou saindo um puta desabafo.”


Para fechar, mais um pouco de Goethe:

"Nada mais assustador que a ignorância em ação".

22 comentários:

Anônimo disse...

mano tem lugar no seu carro pra barueri domingo????

Anônimo disse...

Mano... sábias palavras... dos dois textos... mas e agora? a gente fica puto, se enche de vergonha com essas atitudes, vemos nosso time ficar cada vez mais distante da gente. E agora? só reclamamos? aceitamos as imposições absurdas de riquinho mimados que nunca foram pro estádio pq tinham medo e insegurança. Adivinha só, eles deram um jeito de frequentar estádio... esvaziaram a bancada, proibiram drogas licitas, proibiram violencia e gritos de GUERRA, (agora só se canta coisas meigas). acho q é a nossa vez de tomar o lugar de volta... futebol não é brincadeira para mimados que gostam de sentar e comer pipoca (façam isso em casa). estádio é lugar de gente apaixonada, completamente louca, que faz o time tremer de emoção. grande bola então... futebol para maricas...

abraços... (esse texto teu foi o melhor que já li)

Anônimo disse...

porra mto bom isso.... e eh foda que eu encontro por ai um monte de nego q naum reclama de pagar 30 conto no ingresso soh porque tem dinheiro pra isso.... eu ateh consigo porque pago meia mas tem ese ponto ai dos q ganham uma merreca e naum conseguem mais ir... como vai ficar isso????? aidna bem q tem gente se mobilizando por isso..... valeu barney

Rodrigo Barneschi disse...

Del Nero usa mais uma vez sua tribuna, o Painel FC, para mandar seus recados:

Versão de luxo
A Federação Paulista deve anunciar na segunda aumento no preço dos ingressos nas semifinais e finais do Estadual. O assunto será discutido numa reunião para definir detalhes dos mata-matas. Palmeiras, classificado, e São Paulo e Corinthians já se manifestaram a favor. E a FPF diz que apóia a medida. Não há definição sobre o reajuste. O regulamento estipula só o valor mínimo para a arquibancada: R$ 20. Um dos argumentos dos times da capital é que clubes do interior cobraram mais caro na primeira fase.


Diz a nota que o Palmeiras se manifesta a favor, assim como os dois outros do Trio de Ferro.

Mas a questão é: o nosso ingresso já é mais caro (R$ 30) do que o de SCCP e SPFC (R$ 20 em ambos os casos). Eles querem aumentar ainda mais? E outra: só por que os caipiras resolveram aproveitar a presença dos grandes, nós teremos agora de pagar mais caro de novo?

Rodrigo Barneschi disse...

Mineiro:
Valeu, cara! Mas os textos nem são meus; o objetivo era agregar novos argumentos e idéias ao debate. Entendo o que você diz, mas te garanto que apenas o debate todo já é importante para tentar mudar a situação toda. Começa por aqui, espalha-se por outros blogs, logo ganha alguma relevância. Agradeço a todos os que redistribuirem a informação, pois a internet favorece esse tipo de prática colaborativa. O que não podemos é nos calar diante de tudo isso.

Marcelinho:
Acho que sim, cara. Me liga amanhã.

Craudio disse...

Vou fazer, então, o papel de advogado do diabo, aproveitando o comentário do anderson: calam-se as organizadas por quê? (e eu sei a resposta...)

Apesar de corinthiano, me entristece o relato do cara que foi ao tal setor visa. Porque isso, fatalmente, será ampliado e imposto a todos os estádios do Brasil. 2014 está aí e a apatia do povo permite que se tome esse tipo de decisão.

Aproveitem, caros. Esses são os dias derradeiros do futebol do jeito que a gente aprendeu. Da arquibancada. Apesar de muitos aqui sermos ainda jovens, usamos palavras anciãs. Culpa nossa, ou culpa dessa corja que quer acabar com o pouco de alegria que tem o povo brasileiro?

Anônimo disse...

Muito louco, como sempre!
Só um pequeno detalhe que não poderia ficar impune:

verona o caralho!

veronese PEZZO di MERDA!

NAPOLI SEMPRE!

Anônimo disse...

só li o nome da cidade e já vim aqui pra ver o que o sem limites do rocky ia escrever.

logo mais eu leio o texto todo.


qto ao aumento nos preços dos ingressos, eu já temia q o PALMEIRAS faria isso...40 ou 50 reais, tá bom pros bolsos brazileiros, não??

Anônimo disse...

Luta inglória essa a da Arquibancada...
Não poderão reclamar, em 2013, quando o ingresso mais barato custar 40 reais na promoção, os que hoje não levantarem e se posicionarem.
Na copa que farão aqui o ingresso custará 250 reais. Pra ficar sentado na cadeira, quieto. Sem torcer.
Pois não existe outro torcedor que não o de estádio.

Anônimo disse...

hahahahahaha

Rocky, o previsível!

Anônimo disse...

belos textos, tanto o do goethe qto o do teo.

é, infelizmente já era o futebol por aqui, pelo menos o futebol jogado na 1ª divisão paulista e nacional.

eu ainda irei nos estádios, jabaquara, nacional, juventus, que me esperem e levarei o radinho de pilha pra acompanhar o VERDÃO!!!

Anônimo disse...

Parebéns e 'Paramals'.
As citações são precisas, porém quando tem a chance, os moleques valentões fazem a merda, que 'quase' fizeram lá em Ribeirão. Eu acho que os 'mimados' devem ir ao estádio sim! O dinheiro deles é tão importante quanto ao dos 'fodões' e ao mesmo tempo, eu sempre me questiono, será que o pessoal da organizada torce pelo time, ou às vezes, torce mais pelo prórpio umbigo. Ah em tempo, enqüanto tivermos pessoas com um pouco de inteligência no comando do time, a nossa torcida sempre viverá e crescerá, sendo composta pelos 'mimados', pelos 'fodões' e pelos nem uns e nem outros, onde, humildemente, me incluo. E vamos em frente, para, se Deus quiser, conquistarmos o Paulistinha, a Copinha do Brasil, o Brasileiro e a Sul Americana. Viva nosso Verde e fica Mago!

Teo disse...

Opa Barneschi, valeu aí a reprodução.

Na verdade, esse relato/desabafo apesar de apresentar todo o meu sentimento sincero, começou a tomar forma quando li aquela matéria da Revista Piauí, "O esporte que vendeu a alma" (algo assim).

Acho que vem chumbo grosso por aí. A exploração do potencial do futebol como negócio pelas empresas é recente, e pra mim, grande parte da ameaça está aí. Um bom exemplo: Essa porra de camarote corporativo, agora só se fala nisso. Empresários, executivos e seus clientes enchendo a cara de uísque e champanhe no estádio, fazendo 'relacionamento'. (Aliás, cadê a nossa cerveja?)

O que me assusta é a chegada pra valer de grandes investimentos privados, coincidindo com a tal da Copa 2014 no Brasil. Preocupa-me muito mais que o Palmeiras cobrar os R$ 30,00 pelo ingresso porque o caixa está estourado (sou ingênuo, acho que isso é temporário). Vamos mergulhar de vez e pra valer na coisa do futebol como business e vai sobrar pra arquibancada. Tanto pela descaracterização do futebol que nos acostumamos a amar, quanto pela elitização que virá a cabo. Parece-me um movimento irreversível.

Bom, talvez nós sejamos os últimos românticos. Eu acho que esse debate poderia chegar ao Belluzzo, que parece um cara interessado nessas questões. Além do fato de ele ser o grande entusiasta da Arena, que no final, será uma forma de materialização do que discutimos aqui.

De minha parte, enquanto eu puder, vou chiar e sei que a minha posição é relativamente polêmica. Pra mim estádio não é passeio, nem balada. Mas respeito quem queira passear no estádio. Desde que estes não se importem, de invariavelmente encontrarem uns malucos como nós.

Abraço
Teo

Anônimo disse...

excelente mano!!!!!!
e amanha 3 a 1 no barueri

Anônimo disse...

Rodrigo e Téo: lamento (lamento mesmo!) mas se trata de um movimento irreversível.

abraços verdes,

Luiz - Uberlândia

Anônimo disse...

Rodrigo,

Olha o que eu achei vagando pelo Youtube.

http://www.youtube.com/watch?v=0UmI-xP14Rc

Palmeiras 4 x 2 flamerda

Anônimo disse...

to com medo de pegar os bambis..........toda vez elas nos eliminam

Anônimo disse...

Luiz Uberlândia: Luta inglória da Arquibancada.
Irreversível, sim.
Mas resignar-se?...

Rodrigo Barneschi disse...

Teo,

Cheguei a escrever um post sobre essa matéria da revista Piauí. Está em janeiro deste ano, caso você queira procurar.

De resto, nossas idéias são muito parecidas.

É bom saber que tem mais gente disposta a lutar por um ideal.

Abraços

Rodrigo Barneschi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Filipe,

sim. Ou melhor: aliar-se à iminente realidade e com ela tentar conviver.

assim é o mundo. Assim é a vida. Lembra que tínhamos apenas opalão, del'rey, corcel (I e II), fusca, perua, brasília e variant?! Hoje temos carros senão luxuosos anos luzes à frente daquelas carroças de poucos anos atrás, e mais: com muito mais gente com condições de comprá-los (os novos), mesmo que mais caros do que as furrecas da época.

Ou seja: a evolução (o qualquer outro nome que queira dar) das coisas, dos fatos, das circunstâncias foi colocando as estas mesmas coisas no lugar... só isso.

nos próximos 20 anos, o futebol não vai deixar de ser menos apaixonante porquê os assentos serão de espuma ou teremos uma garçonete gostosa nos servindo na própria 'arquibancada'. As coisas se ajeitarão.. possa saber..

abraços verdes,

(ah!, a propósito e lembrando.. : 'roxo'.. hahahaha.. vocês SEMPRE me fazendo rir.. huahuahuahua!!!!)


Luiz, Uberlândia

Anônimo disse...

Evolução??
E o que tem a ver opalão com arquibancada?
As coisas se ajeitarão aos moldes da NBA americana?
Acho que você, além de almofada, é um desenganado.
Eu posso até ser um lunático, sonhador, romântico.
Mas não sou resignado e, perdoe-me a franqueza, bobo.
Acreditar nessa palhaçada que você acredita, a saber: "nos próximos 20 anos, o futebol não vai deixar de ser menos apaixonante porquê os assentos serão de espuma ou teremos uma garçonete gostosa nos servindo na própria 'arquibancada'. As coisas se ajeitarão..." é simplesmente acreditar que a ARQUIBANCADA não vale nada.
E não me surpreenderia se você afirmasse categoricamente isso.
Aliás, acho até que você deveria fazer isso. Assumir, de uma vez por todas, que não gosta de Arquibancada.
Que prefere ver seu time ou na tevê ou na cadeirinha (e não só seu time, ao que demonstra...).

"Assim é o mundo"... que merda mais vazia pra se dizer...

Pra mim é como alguém da família morrendo. Aliás, a história da minha família. Daí vem um cidadão e diz "assim é o mundo"... E ainda fala em "evolução"...
MA CHE CAZZO SUCCEDE?

Uma observação puramente econômica: você já parou pra pensar no que vai acontecer com esse seu "mais gente com condições de comprá-los"? Já parou pra pensar como é que o povo compra carro? E que "condições" são essas?

POR UM FUTEBOL SEM CADEIRINHA

ARQUIBANCADA!!!