06 outubro 2009

História à venda

Vicente Calderón foi o presidente do Atlético de Madrid por mais de duas décadas. Ganhou mais do que só este quadro (logo abaixo) no museu do clube espanhol; como justa homenagem, ele empresta seu nome ao estádio onde o Atleti manda seus jogos.



O estádio Vicente Calderón, na zona sul de Madrid, fica às margens do Rio Manzanares. É um pouco afastado do centro, mas, como acontece em qualquer metrópole européia, está bem servido por transporte público a partir de qualquer ponto da cidade. Com capacidade para 55 mil torcedores, abrigou todas as grandes conquistas do clube a partir de 1966 (incluindo o Mundial de 1974) e foi também sede de três jogos da Copa de 1982.

É um belo campo, não resta dúvida. Apesar de atender a todas aquelas exigências idiotas que conferem a uma arena o tal padrão Fifa, tem alma de sobra, e é adorado pela torcida local, uma das mais apaixonadas da Espanha.



Acontece que a diretoria do Atlético anunciou recentemente que o Calderón será substituído a partir de 2012 por uma nova arena, ainda um pouco mais afastada do centro. Com capacidade para 73 mil torcedores, o estádio será erguido aproveitando parte do que já existe em La Peineta,
hoje pertencente à prefeitura de Madrid. Havia planos inclusive de usar a instalação em uma eventual Olimpíada de 2016, e a perda da eleição para o Rio em nada parece modificar os planos da diretoria rojiblanca.

A decisão se explica em grande parte devido à pressão do próprio poder público, que queria dar uma destinação adequada a este terreno que corria o risco de ficar esquecido. Mais que isso: a prefeitura tem planos ambiciosos para a área hoje ocupada pelo Vicente Calderón.

A questão é que o atual campo do Atleti ocupa um espaço enorme às margens do Manzanares, impedindo a expansão de uma das principais vias expressas de Madrid e complicando o trânsito no sul da capital espanhola. Com a mudança para La Peineta, o Calderón será demolido, permitindo à prefeitura ampliar a malha viária e construir um parque no local, como parte do processo de revitalização da orla do rio (um rio que, diga-se, sofre com a escassez de água).


E daí?, algum de vocês pode estar se perguntando. Bom, aí eu respondo que este tema interessa - e muito - a este blog. Um pouco porque eu estive em Madrid recentemente, entendi o que se passa com o Atlético e, a exemplo dos torcedores do clube, não aceito a maneira como a situação está sendo conduzida.

No vídeo abaixo, os senhores podem conferir o projeto do estádio, que esquece por completo toda a história do clube.




O discurso da diretoria do Atlético beira o deslumbramento, e baseia-se no argumento de ostentar uma arena mais moderna que o Santiago Bernabeu, a casa do rival Real Madrid. Joga-se no lixo toda a tradição do clube e ninguém parece muito preocupado com o torcedor. O raciocínio é simples: "Vamos demolir a nossa casa e nos mudar para um bairro distante em nome da modernidade".

Para a torcida, os dirigentes do Atlético estão caindo no erro da ostentação barata, um mal que é atribuído à gente do Real. A decisão, claro, não foi bem recebida pelos aficionados. Protestos viraram rotina, e eles aumentaram com a crise técnica e financeira vivida pelo clube e com uma série de decisões tomadas pela atual diretoria, uma continuação do período em que o Atleti ficou sob os mandos e desmandos de Jesús Gil y Gil, presidente por longos 16 anos. Seria, para estabelecer um parâmetro, um Mustafá piorado, então sucedido por um Della Monica ainda mais banana.

No último dia 12 de setembro, um sábado, o Atlético de Madrid, jogando em casa, ficou no 1 a 1 com o Real Racing Santander. O resultado, péssimo, foi precedido de um grande protesto do lado de fora e depois dentro do Vicente Calderón.

O panfleto de convocação, distribuído nas imediações:


Outro panfleto:



Fotos do protesto, que reuniu mais de cinco mil torcedores do lado de fora do Vicente Calderón:



Havia referências, várias delas, que pregavam o ódio ao futebol moderno. A imprensa acompanhou, fez lá suas fotos e, ao menos no caso do Atlético de Madrid, parece perceber que certas opções da direção têm levado o clube a um cenário desolador. Não parece ser o suficiente, mas foi bom notar que, mesmo entre os europeus, existe ainda quem esteja disposto a resistir.

***

O time do Atlético de Madrid parece afundado na crise alimentada pelos próprios dirigentes do clube. Tem muita muita força ofensiva, mas apresenta fragilidades na defesa. Alguns jogadores são bem conhecidos por aqui. Os volantes são os brasileiros Paulo Assunção e Cléber Santana. O meio tem o argentino Maxi Rodriguez e o português Simão. No ataque, uma dupla sul-americana, ambos adorados pela torcida: o uruguaio Forlán e o argentino Agüero.

Ainda assim, o Atleti é o 14º colocado na Liga BBVA 2009/2010. Alcançou sua primeira vitória na última rodada, mas vinha antes de três empates e duas derrotas. Na Champions League, um ponto foi somado nos dois primeiros jogos. Para se ter uma idéia, logo na estréia, três dias depois deste empate contra o Racing Santander, a esquadra rojiblanca não conseguiu sair de um empate sem gols com o, vejam só, APOEL, de Chipre.

O resultado, emblemático da situação vivida pelo clube, rendeu uma crônica brilhante que foi publicada no dia seguinte pelo jornal esportivo Marca. Fiz questão de trazer o jornal e escanear a página para que todos possam entender a situação e desfrutar deste texto primoroso:


Se isto não foi suficiente, tive a sorte de comprar ainda um outro jornal, o As, que publicou a carta de um leitor, torcedor do Atlético, que resume muito bem toda a situação vivida pelo clube:

Sobre empresa sin alma llamada Alteti

Soy abonado rojiblanco y em cada partido se nota crispación, se ha perdido el espíritu, la ilusión. La mayoría de la afición está en desacuerdo com la directiva, pero el sentimiento nos puede y a principio de temporada nos volvemos a ilusionar. La anterior ya se gritó contra la directiva en partidos como el del Valladolid. Hace 10 años cada partido era una fiesta, estábamos con el equipo hasta el final aunque se perdiera, tocábamos las palmas, animábamos, se fumaban puros, todos éramos una gran piña. Hoy se han perdido esos valores que nos hacían una afición grande. Cada año los asientos los ocupan nuevas caras y nos conformamos con llegar a ser terceros. Decir que eres atlético provoca cariño, ya no importa que nos jugadores luchen por la camiseta, no hay um referente como capitán. Quizá ese sentimiento es lo mas importante que han estropeado los gerentes de esta nueva empresa sin alma llamada Atleti.

Alfredo Quijada, Madrid


***

Ao contrário do que acontece na Italia, os espanhóis parecem respeitar essa história de ingressos numerados. Infelizmente. Comprei o meu ingresso dois dias antes do jogo, pela internet. Paguei 30€ (algo como R$ 80), 1/3 do que pagaria para ver o Real - e este era o mais barato. Fiz tudo online e retirei o ingresso na bilheteria do estádio, duas horas antes do duelo.

Atentem para as informações todas sobre o lugar: portão, escada, acesso, setor, fila, assento. Parece incompreensível, mas funciona bem. Infelizmente.



Pra finalizar, uma prova de que há lugares ruins mesmo em estádios padrão Fifa (maldição!). Este lugar aí teria custado 40€:


Parece até o Visa da Vila Belmiro...

***

*Peço desculpas pela demora. Nos próximos dias, mais algumas impressões sobre Madrid, Barcelona e outros lugares.

ÓDIO ETERNO AO FUTEBOL MODERNO!

14 comentários:

Davi Luiz Vieira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Davi Luiz Vieira disse...

Excelente!! muito bom o texto..
Sou do Gama-DF, e vc deve ter ouvido falar no estádio que foi construído lá, o bezerrão(pelo menos o nome não mudou). Quando o Gama estava na 1ª divisão, alguns jogos eram mandados lá mesmo, contra times que não tem a torcida muito grande(caso do Santos de Diego e Robinho na época), mas os jogos contra Palmeiras e Flamengo por exemplo, eram realizados no Mané Garrincha, em Brasília mesmo. Agora gastaram milhões para contruir um estádio pra receber os treinos de alguma seleção na copa de 2014, mas a cidade só possui 1 hospital que atende pelo menos 5 cidades do entorno, e o índice de violência não para de crescer. Além do Gama ter sido rebaixado pra série C no ano passado e esse ano não conseguiu subir.. A "pouca alma" que existia por lá, se foi..

Craudio disse...

Essa crise moral é globalizada, e isso é mais um efeito do moderno futebol que muitos adoram. Vendem a alma sem nenhum pudor e esquecem a luta daqueles que começaram a história.

Ainda bem que há os "marginais", esses teimosos que só querem respeito às tradições daquilo que amam.

Cito ainda o Highbury, abandonado pelo Arsenal e que, segundo o Wikipedia, teve o seguinte fim: "O estádio será transformado em um conjunto de apartamentos, chamado de 'Highbury Square'. Todos os 711 apartamentos já estão vendidos e devem ser entregues em 2010."

Daniel disse...

mto bom mano.... as ferias te fizeram bem mesmo.... huahuahuahua

qto ao texto eh lamentavel ver iso tudo acontecer e ver q pouca gente fica contra isso...

Seo Cruz disse...

Tratando de dar um C + V neste texto essencial, ASSIM, NA CARA DURA!

Saulo disse...

Excelente o texto!!!

Junior disse...

Muito bom cara. Fico feliz em saber que existem outros "ultrapassados" mundo afora.

Abs!

João Medeiros disse...

Excelente texto, Barneschi. O problema parece epidemia. Por todo lado só se ouvem essas malditas idéias de modernização. Aliás, como fala o Claudio, nada contra a modernização, a adequação às novas tecnologias e tal. O problema é que fazem essa merda sem o menor respeito pela história de um clube. Desmerecem e desdenham de tudo que foi feito no passado. Essa história foi justamente o que transformou o clube num ícone de paixão pra muita gente. A gente continua na luta. Abraços.

Rodrigo Barneschi disse...

Davi
Opa, valeu pelo comentário. E me incomoda demais essa mania de brasileiro de querer sempre reformar ou construir novos estádios sem necessidade. E este exemplo aí do DF mostra o quanto isso pode ser ruim.

E obrigado a todos os comentários!

Filipe disse...

Foda, Palestrino. Muito foda isso.
Concordo com o Junior, bom saber que tem outros "atrasados", mas o cenário se mostra cada vez mais desolador. A começar pelos desavisados que rondam os blogues, e descambando nessa agenda de destruição. Que no fim das contas é a mesma coisa, é a mesma mentalidade operando uma equação elitista de merda.

Parabéns pelo post.
Abraço.

Anônimo disse...

Um dos melhores posts dentre os vários que já li por aqui. Muito bom.

E é impressão minha ou só a imprensa brasileira é que faz o possível e o impossível para calar vozes como as nossas?

É difícil encontrar opiniões como a desse torcedor do Atlético de Madri na grande mídia daqui.

Fabricio disse...

puta visao aytrasada.... os times precisam de grana e um estadio novo pode ajudar com isso.... vc fica com essas ideias radicais e nao percebe q o futebol pod se afundar sem essas inovacoes....

Rodrigo Barneschi disse...

Certo. Mas depois não vale reclamar quando a merda estiver feita por aqui também...

Seo Cruz disse...

O problema da tal 'modernização' é que tal conceito sempre quer excluir as camadas mais populares deste esporte. Escondem, dão uma maquiagem bonita, distorcem e apresentam com outra cara a mesma velha e maldita idéia de 'higienização' das arquibancadas. É isso que se torna inadmissível no pensamento de qualquer grande diretoria de hoje.