04 agosto 2013

À sombra das chuteiras imortais

























Vai aqui uma indicação um tanto diferente das demais. Mais do que recomendar uma obra-prima, faço um apelo para a Companhia das Letras providenciar uma nova edição de "À sombra das chuteiras imortais". Porque hoje é impossível comprar este livro, esgotado que está em todas as livrarias e também na editora - sabe-se lá por quê.

Tive o privilégio de ler este verdadeiro tratado sobre futebol ainda na época da faculdade (lá se vão pelo menos 10 anos) por indicação de algum professor. Salvo engano, já não era possível comprar o livro em lugar algum, de tal forma que fui encontrá-lo apenas na biblioteca da boa e velha Faculdade Cásper Líbero. 

Como a Companhia das Letras não lança uma nova edição há tempos, resta a opção de fazer o download de uma das tantas versões disponíveis na rede. Como esta aqui (em pdf).

Nelson Rodrigues dispensa apresentações e, uma vez que o livro está aí disponível para todos, fica fácil conferir as 70 crônicas que trazem o seu estilo inconfundível. Para os não tão familiarizados com a obra do Anjo Pornográfico, deixo aqui dois de seus melhores textos:

O primeiro foi escrito antes ainda de Pelé despontar mundialmente:

A REALEZA DE PELÉ 

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. 


O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

[Manchete Esportiva, 8/3/1958]


Este aqui já se destaca pelo nome - e a prosa de Nelson Rodrigues se encarrega do restante:


O GORDO SALVADOR

Nenhum gordo gosta de ser gordo. Sobe na balança e tem um incoercível pudor, uma vergonha convulsiva do próprio peso. E, no entanto, vejam: — pior do que ser gordo é o inverso, quer dizer, pior do que ser gordo é ser magro. Digo isto a propósito de Feola* , o meu personagem da semana. Ele está em Araxá e eu aqui. A despeito da distância, porém, é como se eu o estivesse vendo com a doce, a generosa cordialidade que é o clima dos gordos de todos os tempos. E aqui pergunto: — um Feola magro teria sido melhor para o escrete?

Não creio e explico. É preciso ver os magros com a pulga atrás da orelha. São perigosos, suscetíveis de paixões, de rancores, de fúrias tremendas. E, até hoje, que eu me lembre, todos os canalhas que conheci são, fatalmente, magros. Acredito que Feola esteja no profundo e amargo arrependimento de ser gordo. Mas, se assim for, temos de admitir a sua ingenuidade. Pois uma de suas consideráveis vantagens de homem e, atrevo-me a dizê-lo, de técnico está nesta circunstância, que ele deplora e repudia. Numa terra de neurastênicos, deprimidos e irritados, convém ter o macio, o inefável humor dos gordos. A banha lubrifica as reações, amacia os sentimentos, amortece os ódios, predispõe ao amor.

Nós temos, aqui, um preconceito, de todo improcedente, contra a barriga. Erro crasso. Na verdade, há uma relação sutil, mas indiscutível, entre a barriga e o êxito, entre a barriga e a glória. Examinem a figura de Napoleão como imperador. Era ele, na ocasião, algum depauperado? Não, senhor. Pelo contrário: — os quadros mostram a inequívoca e imperial barriga napoleônica. E uma das coisas que me levam a acreditar no Brasil como campeão do mundo é o fato de termos, finalmente, um técnico gordo. 

O leitor pode perguntar, com certa irritação: — e que importância tem que o técnico seja magro ou não? Muita. De fato, dirigir um escrete, no Brasil, é um dos mais pesados encargos terrenos. O sujeito está cercado de palpites por todos os lados. Digo “cercado de palpites” e acrescento: — de palpiteiros. O técnico tem, no mínimo, duzentas irritações por dia. E, além do mais, não há função mais polêmica. Tudo o que ele faça suscita debates no país inteiro. Há sujeitos que vivem, dia e noite, tramando a sua desgraça. E das duas uma: ou ele tem uma inexpugnável sanidade mental ou acaba maluco e a família não sabe. Só um gordo, repito, possui por natureza a euforia necessária para resistir às crises de um escrete. 

Por exemplo: — observem o comportamento de Feola na preparação do escrete em Poços de Caldas e Araxá. Nada o perturba, nada o irrita. Não subiu pelas paredes nenhuma vez, não gritou, não xingou a mãe de ninguém. Sabemos que há técnicos no Brasil e, por coincidência, magros, que acham bonito e eficaz tratar o craque a pontapés. Feola, nunca. Podem fazer todas as ondas do céu e da terra. Ele permanecerá com sua alegria imbatível — constante, ininterrupta alegria. E esse bom humor quebra e desmoraliza qualquer resistência. De resto, não desafia, não discute, não ofende. Faz o que quer, e só o que quer, da maneira mais discreta, insidiosa e, direi mesmo, imperceptível. 

Não se sente a autoridade de Feola que, entretanto, é militante, irredutível. Sim, amigos: — não esbraveja, não estrebucha, nem todos percebem que ele é o único que manda, o único que decide. E ninguém se iluda: — a sua abundante cordialidade de gordo é o disfarce de um maquiavelismo benéfico e criador. Esse técnico sem histeria, insuscetível de irritações, fazia falta num futebol de emotivos, de irritados, como o nosso. 

Eu disse que Feola não perdia nunca o bom humor e já retifico: há uma maneira, sim, de enfurecê-lo. É chamá-lo de gordo. Então, ele pula e esbraveja como um caluniado. 

[Manchete Esportiva, 3/5/1958]

7 comentários:

Bruno Bernardo disse...

Rodrigo, no Estantevirtual.com existem alguns exemplares a venda. O problema é que o preço está muito alto, R$ 50,00 na média.

CASSELLl disse...

Barneschi

Muito bom vc aguçar a curiosidade do leitores do blog com este tipo de cultura de jornalismo esportivo para aumentar o senso crítico para atual modelo jornalismo marrom.

Fera o post!

Rafael Teixeira disse...

Pelos dois exemplos deve ser muito bom mesmo. Obrigado pela indicação e por nos "dar" o livro.
Grande abraço.

Anônimo disse...

Bom dia, Barneschi , bela indicação, exemplar obra que realça aspectos lúdicos importantes, parabéns, pela indicação!
Claudio Longo!

Conrado disse...

Salve colega alviverde,

Salvo engano meu, várias dessas crônicas (e eu reconheci as duas que você postou) se encontram no livro "O Berro Impresso das Manchetes - Crônicas Completas da 'Manchete Esportiva' 55-59", que faz parte de uma coleção com vários outros temas dele.

O livro é interessantíssimo, embora as citações ao futebol paulista, e especialmente ao Palmeiras sejam pouco frequentes, é de uma dignidade impressionante.

E é disponível nas livrarias. Segue a capa, talvez reconheça:

http://futpopclube.com/2012/08/23/nelson-rodrigues-o-berro-impresso-das-manchetes-cronicas-completas-da-manchete-esportiva-55-59/


Abraço!
Conrado Secassi

Rodrigo Barneschi disse...

Conrado,
Sim, é isso mesmo. Acontece que boa parte (se não todas) das crônicas são da Manchete Esportiva. Mas o período do livro que eu recomendo aí é bem mais extenso. A seleção é do Ruy Castro.
Valeu e abraços

Barbed Wire disse...

Escrevo de Portugal e tenho nas mãos um exemplar da obra. Comprei o livro na minha primeira viagem ao Brasil em 2002. Lamentavelmente, o grande Nelson Rodrigues (um dos maiores escritores de língua portuguesa) não é conhecido no meu país. Infelizmente é mais do que um oceano a separar dois países irmãos, sobretudo culturalmente. Grande Nelson Rodrigues deveria ser obrigatório no ensino tal como é Camões, Pessoa ou Saramago!