26 março 2009

A inutilidade do cadastro

Imagino que os senhores devam se lembrar do texto que eu escrevi dias atrás sobre a tal carteirinha do Ministério do Esporte, certo? Se não, cliquem aqui. Na seqüência, leiam os textos imediatamente anteriores a este, que tratam, entre outros assuntos, do serviço sujo protagonizado por imprensa e autoridades públicas, que buscam estigmatizar o torcedor organizado (aquele que vai a todos os jogos e dedica a sua vida pelo time) como um inimigo público do “torcedor comum”, seja lá o que for isso.

Acontece que eu sou um mero torcedor de arquibancada, daqueles que vai a TODOS os jogos do seu time e que visita pelo menos 15 estádios diferentes por ano. Tem gente que não leva isso em conta, e prefere deixar tudo nas mãos de burocratas que não visitam o cimento da arquibancada. Neste contexto, é louvável que a Folha de S.Paulo abra espaço para um acadêmico apresentar argumentos contrários a este projeto que já nasce derrotado.

O texto, publicado na seção Tendências/Debates (página A3) de ontem, já manda bem no título: "Cadastro de torcedores não é solução”. Mas a argumentação é ainda mais eficiente, de tal forma que eu me sinto no dever de publicar o artigo na íntegra. Segue no padrão de sempre, com fonte em amarela, sendo que os trechos mais significativos ganham um destaque em branco.

Com os senhores, Martin Curi:

Cadastro de torcedores não é solução MARTIN CURIO cadastro de torcedores tende a criminalizar os espectadores e transmite mensagem estigmatizante: esses sujeitos são perigosos
O GOVERNO brasileiro anunciou recentemente, por meio do ministro do Esporte, Orlando Silva, a alteração do Estatuto do Torcedor. Os pontos centrais são três novas medidas: 1) a exigência de certos laudos de segurança para liberar o uso dos estádios; 2) uma tipificação legal de crimes esportivos; e 3) um cadastro nacional de torcedores. Essas alterações visam garantir um maior nível de segurança nos estádios do Brasil.
A maioria dessas medidas coloca o torcedor como um perigo potencial, que deve ser dominado, em vez de entender um evento de massa como uma ocasião de insegurança, na qual esse espectador deve ser protegido. O cadastro nacional de torcedores tende a criminalizar os espectadores, da mesma maneira como os Jecrims nos estádios (Juizado Especial Criminal), as grades, a vigilância e os circuitos de vídeo. Essas medidas transmitem uma mensagem estigmatizante: esses sujeitos que vão aos estádios são perigosos. Além disso, o cadastro de torcedores invade a privacidade dos indivíduos. Por causa de alguns poucos violentos, todos os espectadores devem sofrer tal exposição?
Enquanto isso, o problema, penso, é outro. Eventos de massa -não só eventos esportivos, mas também de música e religiosos, entre outros- são situações de insegurança latente e requerem medidas especiais.
A primeira e mais importante refere-se à arquitetura do local, que deve ser segura, limpa e capaz de acomodar o fluxo das multidões que se formam. Como os incidentes da Fonte Nova (Bahia) e outros mais recentes em São Paulo demonstraram, isso ainda não é assegurado no Brasil.
A segunda medida necessária é um corpo de agentes de segurança qualificados e treinados para a configuração que os grandes eventos apresentam. Com o Gepe (Grupo Especial de Policiamento em Estádios), no Rio de Janeiro, já se tem boas experiências. Mas seria ainda melhor ter agentes civis, em vez de policiais, para diminuir os sinais agressivos ao público.
Finalmente, é necessária uma entidade nacional, com pontos de atendimento locais, dotados de assistentes sociais profissionais, que crie um elo entre torcedores e instituições como governo, polícia, federações de esporte e clubes.
Essa entidade deveria atender as necessidades de torcedores, divulgar o conteúdo do Estatuto do Torcedor, que é plenamente desconhecido, e garantir um melhor fluxo de informações aos presentes. A ausência dessa entidade é, a meu ver, a grande lacuna do Estatuto do Torcedor.
Como já disse o major Marcelo Pessoa, ex-comandante do Gepe, é necessário tratar os torcedores com dignidade, pois são cidadãos, também consumidores, e não criminosos que devem ser fichados). Experiências na Europa mostram que o cadastro leva a uma pulverização das torcidas e as torna ainda menos controláveis. Melhor é um atendimento que reconheça as suas necessidades. Por isso a maioria dos países europeus não faz uso de um cadastro nacional e nem este é uma exigência da Fifa, como declarado pelo Ministério do Esporte. É apenas, em vista da experiência europeia, uma medida perdulária e inútil.
Além disso, é preciso ter cuidado para não destruir a rica cultura dos torcedores brasileiros, que transformam os jogos, com suas canções e bandeiras, naqueles espetáculos coloridos e emocionantes aos quais fomos acostumados.
Na Inglaterra, onde não há mais torcidas organizadas e todos são obrigados a assistir aos jogos sentados, o relato mais comum é de que não há mais a bela "atmosfera" do futebol, apenas um espetáculo mercantilizado e pasteurizado do ponto de vista dos ditos "torcedores".
Esse não me parece um bom exemplo a ser seguido. Corremos, assim, o risco de produzir os mesmos "estádios-caixões" ingleses, a prosseguir a atual escalada de regularizações, proibições e sistemas de vigilância, em detrimento da democratização do espetáculo esportivo e da oferta das informações fundamentais para que os eventos evoluam de forma segura.



MARTIN CURI é mestre em sociologia pela Universidade de Hagen (Alemanha) e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Esporte e Sociedade da UFF (Universidade Federal Fluminense), em Niterói, RJ.

6 comentários:

Obede Jr. disse...

Assino embaixo. Vê-se claramente quando alguém com conhecimento argumenta, não tem como ir contra as idéias e sugestões dele. Mas aqui é Brasil, amigo, haaja coração!

Nicola disse...

É isso aí, o cara falou tudo.

E viva a arquibancada!

Anônimo disse...

INGRESSO NA MAO PRA SABADADO!!!!!!! ABS

Rodrigo Barneschi disse...

Em tempo: o texto do Martin Curi dialoga bem com este aqui.

Anônimo disse...

Demais esse texto. O cara mandou muito bem.

Vitor dos Reis disse...

"Além disso, é preciso ter cuidado para não destruir a rica cultura dos torcedores brasileiros, que transformam os jogos, com suas canções e bandeiras, naqueles espetáculos coloridos e emocionantes aos quais fomos acostumados.."

Exatamente, abraços.