Todo torcedor de futebol é, por definição, um sofredor. É uma condição prévia, cláusula essencial de um contrato invisível, e isso independe do time escolhido. Qualquer torcedor. Há, no entanto, quem queira deter o monopólio sobre o sofrimento. Refiro-me a nossos rivais da zona leste. É disso que vai tratar o post.
Vivemos o ano do centenário dos caras, e aí tudo parece ganhar uma proporção maior, fazendo com que nossos rivais se deixem levar por esse desejo voraz de tomar como exclusividade deles o que é na verdade a essência de qualquer torcedor. Deles também, é evidente, mas de todos os outros.
A verdade é que, com o passar dos anos, criou-se uma mística, também por necessidade mercadológica, de que tudo para o SCCP é mais difícil. No discurso inventado por eles, tudo é mais sofrido, mais tortuoso, mais complicado. E, claro, mais apaixonado, como se o sentimento deles pelo clube fosse maior que o dos rivais. Não é.
A imprensa tem lá sua culpa, é verdade, mas nada justifica a busca desenfreada pelo monopólio do sofrimento. A tentativa de fazer do torcedor alvinegro um ser diferenciado no mundo do futebol é uma falácia retroalimentada por gente de todos os tipos, de torcedores de estádio a oportunistas de sofá, como se fossem todos pertencentes a uma mesma seita de sofredores, diferente de todas as outras.
Uma vez diante da falácia de que se perfazem os aficionados pelo SCCP, proponho aqui uma análise fria e imparcial dos fatos. Vejamos:
1977. Depois de 23 anos sem título, o rival é campeão de maneira heróica em três jogos contra a Ponte Preta. Espetáculo grandioso, um gol para a história, a catarse coletiva etc. Tudo muito justo, em uma conquista que merece mesmo ser reverenciada como é até hoje. Dito isso, é hora de seguir em busca de mais vestígios deste sofrimento que dizem ser descomunal.
Que tal falarmos sobre o que seria supostamente o maior título já vencido pelo SCCP? Devemos então voltar 10 anos no tempo, ocasião em que velhos sujos e hipócritas, os mesmos que hoje impõem restrições absurdas para destruir nossos estádios, resolveram criar um torneio de verão no Brasil. Convidaram um clube inexpressivo no cenário internacional, incapaz até hoje de avançar além da semifinal de qualquer competição em seu continente. Não contentes com o vergonhoso convite, nossos rivais tiveram ainda de contar com a ajuda da arbitragem (sempre vigilante!) para superar o marroquino Raja Casablanca. O restante é bem conhecido. Não vejo indícios de sofrimento aqui; pelo contrário.
Nosso rival tem ainda quatro títulos brasileiros. Vamos tratar disso:
1990. Um título merecido, de um time limitado que superou Atlético/MG e Bahia no mata-mata (com um duplo 2-1 em casa e 0-0 fora) para então derrotar, em dois jogos, um rival local, o SPFC: 1-0 e 1-0. Bela conquista, eu reconheço.
1998/1999. Também no sistema mata-mata, o que dignifica qualquer vitória, títulos incontestáveis contra, respectivamente, Cruzeiro e Atlético. Tudo dentro da legalidade, mas não consigo identificar nenhum indício de sofrimento, uma vez que eles tinham um grande time e chegaram aos títulos com certa naturalidade.
2005. Gostaria novamente de entender onde está o sofrimento. Porque nunca antes na história do futebol brasileiro um time contou com tanta força de bastidores para ser campeão. Vejam os senhores que o SCCP não apenas conseguiu anular e jogar novamente dois jogos com resultado consumado, mas também contou com o providencial auxílio da arbitragem no jogo decisivo: o pobre diabo que definiu o campeão brasileiro de 1995 fez o mesmo 10 anos depois. No mesmo Pacaembu.
Poderíamos então falar sobre os títulos da Copa do Brasil, e ao menos o de 2002 é passível de contestação, com mais um erro grotesco da arbitragem.
De resto, e ainda tratando da ausência de sofrimento, é justo lembrar que o SCCP é o time que mais vezes venceu o Campeonato Paulista. E é também um clube que historicamente conta com certa benevolência das arbitragens, o oposto do que acontece, por exemplo, com o Palmeiras.
Poderá algum alvinegro, incapaz de refutar a argumentação acima, dizer que o que está em jogo é a capacidade de superação. Se for assim, fica mais fácil minha tarefa por aqui, uma vez que nenhum outro clube neste país coleciona tantos episódios de superação como a Sociedade Esportiva Palmeiras.
Poderíamos começar por 1942, quando o SPFC tentou - sem êxito - tomar a nossa casa de todas as maneiras possíveis, desde as vias políticas até as vias de fato, ocasião em que foram rechaçados pelos guerreiros palestrinos. Pressionado, o Palestra se viu obrigado a mudar de nome e renasceu de maneira triunfal, derrotando o mesmo adversário no Pacaembu e superando-se a ponto de passar por cima da recepção adversa e botar para correr os atletas rivais. Fugiram de campo! Arrancada Heróica: não há episódio de maior superação na história do futebol brasileiro.
Coube ao Palmeiras também, já nos anos 60, superar seus próprios limites contra o Santos de Pelé: com os títulos de 1963 e 1966, o alviverde foi o único clube a evitar o que poderia ter sido uma sequência de 10 conquistas do SFC.
O Palmeiras teve também a sua fila, dramática como a do rival, com fracassos retumbantes ao longo de 16 anos, crises infindáveis, protestos da torcida e ao menos dois grandes episódios de redenção para compensar as tantas decepções contra times pequenos.
O primeiro, parcial, se deu na
semifinal do Paulistão de 1986, com um 3-0 sobre o maior rival depois de um assalto sofrido na partida de ida. O detalhe desse jogo é que a goleada esconde a tensão e a dificuldade do duelo: o gol da vitória só saiu aos 42 minutos do segundo tempo, com muito sofrimento, quando os inúmeros gols perdidos durante toda a partida já faziam crer que viria a eliminação. Mas veio o 1-0 salvador. Depois dele, na prorrogação, mais dois: uma goleada no sufoco. Coisa linda.
O segundo, definitivo, em 1993, com outra goleada na base da superação e com a dose necessária de sofrimento. Desnecessário seria entrar nos detalhes.
É possível que algum adversário venha levantar a bandeira da Série B, em uma tentativa de mostrar algum resíduo de superação. Boa tentativa, mas o sujeito que fizer isso perderá a briga também, e
este post, de 2008, traz os números que justificam minha afirmação: subimos quando o campeonato era disputado com quadrangulares finais, e precisamos superar três fases (contra um grande carioca, além do Sport e de outras tranqueiras muito mais relevantes); o rival subiu sem fazer força, com pontos corridos e com quatro sendo promovidos. Além disso, caímos primeiro e sofremos toda a humilhação do primeiro grande paulista a descer para a Série B.
Ao final disso, gostaria de conhecer os argumentos da torcida rival: o que é sofrimento? O que é superação? O que é ser diferenciado?
Se os alvinegros desejam tanto assim o monopólio do sofrimento, precisariam ao menos mostrar que ninguém sofre tanto quanto eles. E isso cai por terra muito facilmente, já na comparação com o Palmeiras. A mística do SCCP é uma fraude.
Se quiserem entrar na discussão sobre o tamanho do sentimento ou sobre fidelidade, já me antecipo:
Poucas torcidas são tão apaixonadas quanto a do Palmeiras. E eu colocaria aí na lista, junto com a nossa e a com a do SCCP, também as de Grêmio, Inter, Atlético/MG, Flamengo, Vasco, Bahia, Santa Cruz, Paysandu etc. Não tem nada na torcida do SCCP que seja diferente dos clubes citados acima (e outros exemplos são válidos).
Se a discussão for sobre fidelidade (mas só se realmente quiserem discutir isso), solicito aos rivais da zona leste que reconheçam a superioridade do Santa Cruz. É indiscutível.
Por fim, ainda tratando do tema "Sofrimento", eu pergunto: é possível ser mais sofredor que o torcedor de um time como a Ponte Preta, cuja torcida, fanática e sempre presente, jamais viu o time ser campeão de porra nenhuma?
Não dá para comparar. Nenhum torcedor de time grande sofre tanto quanto isso. No caso dos alvinegros (e também no Flamengo, aí até com mais ênfase), o que existe é a construção artificial (e mercadológica) de uma mística que não se sustenta. E nossos rivais acabam acreditando e disseminando a mentira que vem sendo construída há tempos.